quinta-feira, 27 de outubro de 2016

JORNADA CULTURAL NA TOUREGA






Por razões compreensíveis, o tema "TOUREGA", tem sido dos mais abordados neste blog (ver os links). Não é hoje o sítio mais conhecido do polo "Guadalupe/Valverde" em face ao "boom"turístico eborense (dificilmente rivalizará com o Cromeleque dos Almendres) mas é certamente um dos mais interessantes e com maior peso histórico. Até por conjugar num mesmo lugar tantas valências patrimoniais: da arqueologia à paisagem, do património construído ao integrado, tudo embalado por uma ganga mitológica que é afinal o cimento cultural que assegurou, ao longo de mais de dois mil anos de história, a resiliência ao tempo e ao esquecimento deste como de tantos outros lugares. Lugares que fazem (faziam) parte da paisagem humanizada do Alentejo mas que, por desgraça, numa época em que tanto se "fala" de património, parecem condenados a desaparecer, um após outro... E a Tourega, como o São Matias (Guadalupe) parecem estar já numa dobra do tempo. Ainda lá estão, (por contraditório que pareça graças ao cemitério) mas de um momento para o outro, se nada se fizer, serão mais um lugar de ruína, como tantos outros que despovoam os aros das vilas alentejanas, também elas vítimas da míngua de gente.

Mas no próximo feriado (todos-os-santos, véspera de finados), tirando partido dessa ligação que ainda vamos tendo com os nossos "mortos e os seus espaços", vamos "animar" a TOUREGA com uma Jornada Cultural. Vamos mostrar o restauro em curso no seu importante retábulo (talvez obra de um mestre flamengo), abrir as ruínas romanas a uma visita guiada e fazer ecoar de novo na velha Igreja, os cânticos religiosos da Sé de Évora, compostos na época em que a TOUREGA (SéculoXVI/XVII) seria um lugar de culto e peregrinação no combate contra o "paganismo" e o "reformismo" promovido pelos Arcebispos de Évora (Cardeal D.Henrique e D.Teotónio de Bragança) que, como se sabe, tinham bem perto (Mitra) os seus aposentos de Verão.


Outras referências à TOUREGA, neste blog:

http://pedrastalhas.blogspot.pt/2014/09/ruinas-da-tourega-por-razoes-mais-que.html

Os trabalhos de conservação e restauro em curso no Retábulo da Tourega


O programa do Concerto do EBORAE MUSICA para o dia 1 de Novembro

Programa

Da polifonia da Sé de Évora
Stabat Mater                                                 Estevão de Brito (c.1570-1641)
Ecce Justus                                                               
De profundis                                             Estevão Lopes-Morago (c.1575-c.1630)
In jejunio et fletu                                                  Diogo Dias Melgaz (1638-1700)
Missa pro Defunctis                                               Estevão de Brito (c.1570-1641)
Dona eis
Missa para Advento e Quaresma (IV voc.)            Frei Manuel Cardoso (1566-1650)
Sanctus e Agnus Dei
Patter Pecavi                                                                  Duarte Lobo (c.1565-1646)

Do cancioneiro mariano popular…
Senhora do Almurtão                                    Mário de Sampayo Ribeiro (1898-1966)
Senhora do Amparo                                        Fernando Lopes-Graça (1906-1994)
Senhora de Aires                                                     

Coro Polifónico Eboræ Musica
Direção: Eduardo Martins



Texto de apoio à JORNADA CULTURAL:

A Tourega, a sua igreja e o seu património

A actual Igreja Matriz da Tourega remonta pelo menos ao Século XV, mas foi objecto de obras no final do Século XVI por iniciativa do Arcebispo de Évora, D.Teotónio de Bragança (1578-1602), época em que terá sido produzido o importante retábulo do altar-mor. Segundo o Prof. Vítor Serrão, o interesse por este local de D.Teotónio e do seu antecessor Cardeal D. Henrique, estará relacionado com a presença de provas materiais das antigas lendas fundacionais da Igreja eborense que colocavam nestas paragens os martírios do Bispo São Jordão e das irmãs Santa Comba e Santa Inominata. De facto ainda hoje aqui subsistem as ruínas da Ermida de Santa Comba e da Fonte Santa, a que André de Resende chamou a “Cova dos Mártires”, fazendo recuar a tempos imemoriais o interesse devocional da Tourega. Afinal, a origem tão remota não deve ser estranha a proximidade das ruínas de uma extensa “villa romana” onde foi recolhida uma das mais importantes inscrições latinas do país (actualmente cedida para uma exposição em Madrid). Com efeito, a Tourega, ainda hoje lugar de culto e de memória porque a par da Igreja aí subsiste o velho cemitério da freguesia, mas também espaço de lazer, dada a proximidade da Barragem, constitui um raro exemplo dos fenómenos de sedimentação cultural que estão na origem das paisagens rurais do Alentejo. A salvaguarda e a valorização deste património, essencial para o conhecimento das nossas raízes, não é porém tarefa simples, face ao acelerado despovoamento que este território tem conhecido. A desmemória e a perda de funções são os primeiros passos de um processo a que se seguem o abandono, o vandalismo e finalmente a ruína, existindo no território da nossa união de freguesias outro exemplo que nos deve preocupar: “São Matias”, a exigir também urgente cuidado pelos fracos recursos locais.
 Na Tourega, para além da chamada de atenção para a sua mais valia patrimonial - de que foi exemplo a recente publicação do manuscrito “Notícias da Tourega em 1736”- e após o tratamento preventivo das imagens (provisoriamente guardadas na Igreja de Valverde) está agora a Junta, com a colaboração técnica da Direção Regional de Cultura do Alentejo e logística da Câmara Municipal e da Paróquia, a intervir no retábulo da capela-mor. A par da necessidade de limpeza e fixação das pinturas do Século XVI (que Vítor Serrão atribuiu recentemente ao pintor Flamengo Francisco de Campos) toda a estrutura do retábulo apresentava repintagens espúrias que era necessário remover para conferir dignidade ao conjunto. No entanto, estes são apenas os primeiros passos de um processo longo e complexo que não pode esquecer, para além da conservação da própria igreja, as ruínas romanas que apresentam problemas de conservação e o enquadramento geral de todo o conjunto, incluindo acessos, estacionamento e algum apoio à sua visita e usufruto. Naturalmente são objectivos ambiciosos para uma Junta de Freguesia rural, mas é também por essa razão que procuramos desde logo a colaboração dos primeiros interessados, a população, e contamos com o apoio das entidades que connosco estão a colaborar.



sábado, 22 de outubro de 2016

O MAAT (o novo Museu ? da EDP) e a responsabilidade social.
Um debate no meu "mural"

O tal MAAT, em foto "copiada" da NET (Jornal de Negócios ?) pois ainda não tive oportunidade de apreciar o dito cujo...

Julgo que foi na passada quarta-feira (19 de Outubro) que partilhei no meu Facebook um comentário do Luís Raposo a um assertivo e acutilante artigo de opinião do José Vitor Malheiros sobre o MAAT acabado de publicar no jornal Público. Aproveitei, como muitas vezes faço, a boleia do Luís para ler o tal artigo e tendo concordado no essencial com os conteúdos do mesmo e do comentário, partilhei ambos manifestando o meu acordo. Nada de mais...

Eis quando, no dia seguinte, sou alertado por um comentário do Luís, publicado no meu próprio mural (julgo que é assim que se diz já que sou um mero utilizador, de "fim de semana", das redes sociais... e não controlo muito estas coisas, nem me interessa para ser franco) para um debate que estaria a decorrer no meu Facebook, ou seja nas minhas próprias "costas"...

Dizia assim o Luís Raposo nesse comentário de 20 de Outubro publicado no meu mural: 

A propósito de "responsabilidade social"... um debate em curso no Facebook do meu amigo António Carlos Silva

De modo que resolvi investigar o meu próprio Facebook e lá encontrei o interessante debate entre o próprio Luis Raposo e o António Carlos Valera, a que se juntara depois o Miguel Lago. Ainda que a discussão tivesse sido motivada pela aplicabilidade ou não, do conceito de "responsabilidade social" ao exemplo concreto em presença (a tal obra faraónica da EDP, uma empresa que antes de mais se deveria preocupar com a responsabilidade social para com centenas de seus directos "colaboradores", meros "prestadores de serviços" a quem não reconhece qualquer vínculo laboral, prática que é uma praga do nosso tempo), a discussão rapidamente se alargou ao entendimento de cada um dos interlocutores, do papel (social) do Estado e das Empresas, com naturais mas significativas diferenças de opinião. Não apenas de base ideológica, mas reflectindo também muito da experiência de vida dos intervenientes. O Luís Raposo fez toda a sua longa e brilhante carreira arqueológico-museológica na "função pública". O Miguel e o Valera, são pioneiros da chamada "arqueologia de contrato", actuando no âmbito de uma das primeiras empresas do ramo, hoje líder de mercado. 
Ora perante tal abuso do meu mural (o Valera acabou por educadamente apresentar as suas "desculpas"...) resolvi vingar-me destes velhos amigos (já o éramos antes de nascer o Marc Zuckerberg) e copiar todos os textos para este meu "blog". E se aqui quiserem continuar o debate, façam o favor...

Começo, naturalmente por recordar o comentário original do Luís, acompanhado pelo texto do José Vítor Malheiros (em fraca resolução, pois não tive acesso ao original), seguindo-se a transcrição (copy/paste) dos sucessivos comentários:, pela ordem em que foram publicados.

Luis Raposo
José Vítor Malheiros diz hoje no Jornal Publico grande parte do que deve ser dito a propósito do MAAT. Só lhe falta acrescentar duas coisas: primeiro, a triste figura que as principais figuras do Estado fizeram ao avalizarem a "coisa" de forma provinciana, bacoca e irresponsável, ou até afrontosa, do ponto de vista político e cidadão; segundo, a circunstância de a dita "coisa" não ser sequer um museu, mas tão-só o "lugar de eventos"... Talvez bonito quando visto do Tejo (embora feio quando visto da retaguarda), mas feito sobre os escombros de património pré-existente e não irrelevante, no que se configura ser o exemplo típico de como continuam a existir "donos disto tudo". Em suma: assim haja dinheiro, existem palhaços.





António Carlos de Valera Pois eu diria que o artigo ao tocar em pontos importantes, mete tudo no mesmo saco. Pensar que a responsabilidade social é um conceito que meramente serve para subterfúgios e para mascarar comportamentos é partir do princípio, tão querido ao bonapartismo, de que o cidadão e as instituições que cria são, no seu estado natural, uns malandros. Avaliar um conceito destes a partir de umas quantas práticas seria o mesmo que avaliar o conceito de Democracia a partir de umas outras tantas menos adequadas. Ou o conceito de serviço público. Quantas vezes me questiono sobre a responsabilidade social, nos termos deste texto, de quem nos governa ou nos "serve" em tantas instituições públicas. A responsabilidade social é um conceito útil, não deve ser confundido ou restrito às obrigações inerentes, nem subtraído ao voluntarismo (garante de responsabilidade, porque sobre responsabilidade obrigatória estamos falados) e em nada ganhamos em tentar fazer parecer que não é mais que uma espécie de caridadezinha, para que tudo o resto fique na mesma. Dito isto, penso que a forma como a EDP exerce a sua Responsabilidade Social é questionável e criticável. Mas isso é uma coisa. A noção e importância de Responsabilidade Social é outra.

Raposo Luís
 Numa sociedade democrática, a responsabilidade social entendida como benefício do bem comum em domínios que exprimam valores também comuns não susceptíveis de tutela privada, deve em primeira linha competir ao Estado e às instituições que o materializam, nomeadamente ao Governo. Em segunda linha às organizações da (mal) chamada sociedade civil, sejam de índole religiosa, humanitária, profissional ou "apenas" cívica. Nunca a entidades que têm por objectivo último a criação de riqueza a distribuir pelos seus detentores e cuja função social se esgota na prestação dos serviços ou produtos que se propõem garantir e cuja contratação com os seus consumidores ou utentes se deveria pautar por estritas cláusulas de garantia das melhores condições de qualidade-preço. Qualquer entendimento empresarial de responsabilidade social fora deste quadro contratual, explícito ou implícito, constitui um logro e mesmo uma ofensa à inteligência dos cidadãos.

António Carlos de Valera Não podia estar mais em desacordo. Em sociedade democrática "a responsabilidade social entendida como benefício do bem comum em domínios que exprimam valores também comuns não susceptíveis de tutela privada" não pode ser suprimida a ninguém. Sob perigo de vivermos sobre uma ditadura de iluminados da causa pública, que por ser pública, é de todos. Eu recuso liminarmente que o meu trabalho numa instituição privada não esteja a resultar em benefício público muito para além dos benefícios que traz à instituição privada, E já agora "entidades que têm por objectivo último a criação de riqueza a distribuir pelos seus detentores" é uma visão limitada, para não dizer perversa, de quem trabalha no contexto das sociedades modernas (outra vez um problema de meter tudo no mesmo saco). E quando ao "pautar por estritas cláusulas de garantia das melhores condições de qualidade-preço", aí termos que considerar que muitos serviços públicos rivalizam com as piores práticas dos privados.

António Carlos de Valera O problema continua, pois, nesta eterna dicotomia público/privado que a sociedade portuguesa ainda não mostrou capacidade de superar, com responsabilidades para todos os lados.

Raposo Luís Infelizmente, ou não, ainda ninguém conseguiu inventar forma melhor de definir o bem comum do que a comum, universal e livre, por isso democrática, expressão do mesmo, por via eleitoral, traduzida, sob a forma de cascata de consequências, em sistemas governativos, completados ou confrontados estes pelo comum e também livre movimento associativo não mobilizado pela, aliás legítima, criação e apropriação privada de riqueza. As empresas são, foram e sempre serão "sociedades de responsabilidade limitada", limitada ao contrato que estabelecem com os utentes ou consumidores dos seus serviços e produtos. Qualquer outro entendimento viola este contrato.

António Carlos de Valera Visão limitada do que significa empresa, que significa agir, devendo a valorização da acção focar-se na acção e não em pré-juízos. A responsabilidade social só é limitada a quem, por conveniência ou não, se deixa limitar. E eu recuso que me limitem as minhas motivações em nome de princípios que sigo mais de perto que muitos dos que os evocam. Não aceito, portanto, estas generalizações, que categorizam e, assim, procuram limitar e controlar, sob a capa de uma adequada (tocada por uma mágica fada) interpretação do que é o bem comum (como se isso não fosse uma permanente negociação mais ou menos conflituosa). Resumido, e como dizia Bachelard, não existe o simples, só o simplificado.

Miguel Lago  Entidades públicas e privadas e homens e mulheres que actuam nesses domínios vivem no mesmo contexto social. Todos partilham responsabilidades e obrigações que, quanto a mim, permitem o desenvolvimento tendencialmente harmonioso das sociedades contemporâneas de índole democrática. Sem iniciativa privada viveríamos em sociedades menos livres, totalmente dirigidas e com menos debate e escrutínio. Sem estruturação pública, viveríamos num mundo provavelmente mais injusto e caótico. É do equilibrio entre estes dois pólos do todo social que muito provavelmente nascem as maiores virtualidades do mundo em que vivemos.
Assim, assumindo que cada um desempenha o seu papel, não me parece correcto nem vantajoso olhar a realidade numa perspectiva maniqueísta em que público se sobrepõe ao privado e em que entidades e pessoas do domínio público estão num patamar superior em relação a entidades e pessoas do domínio privado.
A sociedade em que vivemos depende em muito da iniciativa privada, que lhe traz criatividade, concorrência ou competição. Tudo assente em regras que, numa óptica de controlo público, harmonizam eventuais desvios. O domínio público tem os seus mecanismos de controlo interno a que se acresce o papel da chamada opinião pública e o escrutínio democrático exercido pelos cidadãos através do seu voto em eleições.
Resumindo, não existe uma hierarquização, antes prevalecendo uma complementaridade de papéis neste sistema tão complexo.
Quanto ao MAAT, que ainda não visitei, enquadra-se numa estratégia de afirmação de uma empresa e de pessoas que a governam através da designada Resposabilidade Social, que não deve ser confundida com o estrito cumprimento das suas obrigações legais.
Com toda a sinceridade, a grande diferença na tomada de decisão entre a construção deste equipamento e o seu vizinho, o novo Museu dos Coches, não é grande. O que é preocupante será o facto de o segundo, sendo público, parecer privado no que ao processo de decisão diz respeito.
P.S. - porque parece existir algum equívoco ao nível do conceito de Responsabilidade Social, aqui fica alguma informação adicional:https://pt.wikipedia.org/wiki/Responsabilidade_social


Raposo Luís Concordo em praticamente tudo. Duas pequenas excepções apenas: não colocaria em último lugar o voto dos cidadãos. Ele precede aquilo que chamas de "domínio público". Este não existiria sem aquele, pelo menos em democracia. Segundo: existe uma enorme diferença entre o novo MNC e o MAAT: o primeiro é referendável pelos cidadãos e de facto constitui tema de intenso debate ; o segundo, sendo privado, está imune ao escrutínio político da polis. E sendo promovido por quem é está protegido por espessa teia de cumplicidades e interdependências.
Quanto a "responsabilidade social corporativa", já disse o que penso em mais um post para que tomo a liberdade de te reenviar.


António Carlos de Valera Pois eu gostaria de manifestar algum incómodo com a compartimentação de papeis que está expressa no teu comentário Miguel. A ideia de uma sociedade em que privados e públicos têm os seus papeis, bem definidos e complementares, traduz uma imagem mecânica da sociedade, organizada em peças, cada uma com a sua função. De compartimentos que dependem de uma extraordinária capacidade de entendimento (óleo) para superar os problemas gerados pela compartimentação. A sociedade é muito mais orgânica que isso, fluída e resistente (felizmente) às impermeabilidades que resultam da distribuição de papeis. Problema do espírito moderno, que introduziu esta dinâmica de especialização que nos procura calar sempre que nos consideram fora da nossa especialidade. Parece que cada vez mais temos dificuldade em lidar com escalas e zooms, refugiando-nos na caixa que escolhemos ou escolheram para nós. É por isso que a responsabilidade social é tão importante. Porque nos ajuda a libertar de constrangimentos que nos impomos ou nos tentam impor, A responsabilidade social é também uma responsabilidade individual, para nós próprios, e uma forma de combater versões de liberdades tuteladas, de papeis distribuídos e condicionados. Quando uma empresa é um projecto social é muito mais que simplesmente um projecto económico (embora necessite que o segundo tenha sucesso para o primeiro também o ter). E isto que não pode ser limitado de qualquer acção cívica, de também interpretar o que é o bem comum, o que a construção de uma empresa também é. O problema, repito, são as categorizações simplistas que metem tudo num mesmo saco. (António Carlos, desculpa o abuso do teu espaço, ainda por cima quando não "podias estar mais de acordo" com a notícia. Mas a troca de ideias até foi (está) interessante e sobretudo esclarecedora. Um abraço).

Raposo Luís Realmente é quase um abuso estar aqui a encher o Facebook do António Carlos, embora eu não tenha dúvida de que ele aprecia este bate-papo. Porque nenhum de vocês se lhe refere, permito-me assinalar o post que pus no meu Facebook (e partilhei aqui) "ainda e ainda sobre responsabilidade social..."
Quanto ao teu conceito de empresa, idílico ou ingénuo, convenhamos, nada a opor. Servirá para consolar algumas consciências e entreter alguns "pequenos espíritos" (no sentido da expressão em francês). Também em clubes de futebol se podem fazer jogos florais. Ou em casinos se pode promover a cultura. Não vem daí mal ao mundo. Mas nada disso ilude em mim qual o objectivo principal e a verdadeira razão de existir de clubes de futebol e casinos. E muito menos me faz equiparar essas "responsabilidades sociais" de ambos com as políticas públicas de promoção da literatura e da cultura exigidas pelos cidadãos, através do seu voto e dos seus movimentos associativos.


António Carlos de Valera Está a ver-se que nunca jogaste futebol.

Raposo Luís A sério, não. Com essa é que me tramaste, pá.

António Carlos de Valera Pois, é que clubes de futebol também são associações de cidadãos e recebem muitos privilégios e dinheiro dos organismos públicos, o que é natural, pois que estes organismos têm as responsabilidades da "promoção da cultura exigida pelos cidadãos". No mínimo diria que a tua ingenuidade relativamente às "políticas públicas" rivaliza com a minha ingenuidade relativamente ao conceito de empresa.

Raposo Luís Pode ser... (e eu a pensar que os clubes de futebol eram empresas... SADs, parece; mas por outro lado tens razão: eu nunca disse que as associações de cidadãos, ONGs, se devem substituir ao Estado na acção que a este compete e para a qual é o único detentor da legitimidade que o universo dos cidadãos lhe confere, pelo voto; devem pressionar, podem até desempenhar algumas funções daquele, delegadas ou usurpadas pela legítima acção libertadora que devem exercer, mas não se lhe podem, nem devem, substituir).

António Carlos de Valera Apenas mais um comentário para terminar, que isto já vai logo e já está tudo dito no essencial de cada visão: a ideia de que o Estado é "o único detentor da legitimidade" por exemplo da "promoção da cultura" causa-me arrepios. Parece que a sociedade de onde emerge e pulsa a cultura não tem legitimidades. Ai da cultura, sempre fonte de contrapoder e liberdade, que fique dependente de promoções sectorais, sejam elas públicas ou privadas. A cultura é mesmo uma dessas coisas que deve ser ingénua e pairar sobre todos os que a procuram capturar e conformar. De boas intenções está o Inferno cheio e segundo ouvi dizer ali não há distinções entre públicas e privadas.

Raposo Luís Concordo. Se dei a entender o contrário foi inadvertidamente. E agora também eu vou fechar a loja. Abraço.

Miguel Lago Ainda antes de fechar, gostava de dizer que as compartimentações também me perturbam. Infelizmente, contra natura, tenho que as ir tolerando. Mas existe algo que não suporto: a pretensão de muitos relativamente a uma superioridade moral que advém do universo dito público. Volto a dizer, todos somos indivíduos, todos temos os mesmos defeitos e as mesmas virtudes. E se me movo no dito âmbito privado, nunca deixo de assumir, na minha acção de responsável de uma empresa, uma postura de serviço público. O que para alguns pode ser idílico, para mim é naturalmente necessário. Quanto ao chamado lucro, não tenhamos dúvidas: públicos e privados carecem dele para prosseguir a sua marcha. Todos. O público vive de impostos (aquilo que é imposto a alguém, ou seja a todos os que vivem na sociedade); o privado vive da capacidade de gerar riqueza (de que paga impostos) daí resultando uma renovada capacidade de investimento em novas ideias, capacidade de promover emprego e estruturar uma estabilidade de cariz social.
Como diz o António Valera, lutemos contra as fronteiras bem definidas da especialização (eu diria das especificidades formalizadas).



Já depois de divulgado este "post" e de cerca de uma "centena" de leituras, o Luis Raposo registou no meu Facebook este texto final que, por algum motivo, me tinha escapado. Aqui fica para que o debate fique completamente documentado:

 Ainda e ainda sobre “responsabilidade social” das empresas diz um colega que admiro (profissional e intelectualmente) que nesta coisa de “responsabilidade social” o que nos divide, e vai sempre dividindo, é uma velha, “arqueológica”, divisão entre “público” e “privado”, que eu continuo a defender e os mais arejados já ultrapassaram. Não concordo. A distinção é antes entre sociedade moderna, pós Revolução Francesa, e sociedade arcaica, do Antigo Regime. Neste último, de facto, muitas das necessidades do bem comum eram garantidas por “empresários”, fossem eles da oligarquia terratenente ou da burguesia comercial e pré-industrial. Prestavam tais serviços por temor a Deus, uns, por amor pelo próximo, outros, e a maioria porque simplesmente precisavam de mão-de-obra alimentada qb, saudável qb e, se possível, feliz qb (“pão e jogos”…). As sociedades modernas instituíram essa coisa horrenda do cidadão, representado pelo Estado. O que ficou desde aí para as empresas? Pois, fazerem aquilo que utentes e consumidores lhes justificam que façam: produzir bens e serviços aos melhores preços e com a melhor qualidade. Em mercado concorrencial, posso até admitir que faça parte da equação do sucesso empresarial despender somas, mais ou menos avultadas, em “responsabilidade social”, como em publicidade, mesmo com risco de encarecimento dos produtos ou serviços oferecidos. O “mercado” se encarregará de verificar se tal é sustentável a longo prazo. Em domínios de monopólio entendo que tal prática é danosa do contrato, formal ou informal, estabelecido com consumidores e utentes, os quais não podem optar pela concorrência, porventura prestadora de bens e serviços mais baratos, porque não onerados por essa dita “responsabilidade social”.
Mas isto são questões menores. A questão fundamental é filosófica e política. Não me encontro disponível para alienar a minha quota parte cidadã, traduzida em voto de quatro em quatro anos e em acção cívica todos os dias, outorgando-a à "clarividêndia" de alguns apenas, não eleitos nem mandatados por ninguém para o efeito, sejam eles empresários ou não. Dito de outra forma: A mim pouco me importam as motivações profundas que levam cada empresário concreto a praticar aquilo que chama de “responsabilidade social”. Em países como o nosso diria que tal deverá ser na ordem dos 80% por questões de prestígio de marca, devidamente publicitado, dos 15% por razões de prestígio pessoal, devidamente publicitado, e só muito residualmente, na ordem dos 5%, em resultado de verdadeiro cometimento cívico. Admito que noutros países, por exemplo na Europa Nórdica, estes valores variem bastante, sendo muito maiores, próximo dos 50%, as motivações puramente cívicas, em parte de raiz religiosa. Mas, repito, isto pouco me importa. Se um empresário quer fazer o bem, substituir-se aos hediondos e ineficazes serviços públicos (que o são, efectivamente, muitas vezes), usando para o efeito receitas geradas pela actividade da empresa, então que o faça apoiando o movimento associativo relevante, as chamadas ONGs. E já agora, se não fosse pedir em demasia, que o fizesse com a despegada discrição que recomenda a Bíblia, em texto atribuído a Mateus: “não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita.”
Fora deste quadro a chamada “responsabilidade social” das empresas é apenas um logro (como aquele que nos diz que o “marketing” não é uma forma de melhor nos impingir produtos, mas de nos fazer tomar consciência das nossas necessidades, mesmo que subconscientes). Ou então é muito pior: é a defesa insidiosa do regresso ao Antigo Regime, anterior ao Estado democrático. Cada empresa com os seus protegidos; e todos estes na fila das migalhas. Abaixo o Estado e o Governo. Abaixo os serviços públicos.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

"Vénus paleolíticas" portuguesas?


Pese embora a importância que a arte paleolítica assumiu no contexto da arqueologia portuguesa, em particular após as descobertas excepcionais do Côa há cerca de duas décadas, incluindo já um núcleo excepcional de "arte móvel" (conjunto de pequenas placas de xisto gravadas do sítio do Fariseu), há um domínio que falta ainda preencher, uma espécie de "buraco negro" à espera que um dia se faça finalmente luz. Refiro-me às estatuetas femininas paleolíticas conhecidas como "Vénus", que têm lugar privilegiado em qualquer História da Arte Universal. É verdade que a bibliografia arqueológica nacional regista dois possíveis exemplares recolhidos no território português, divulgados por nomes bem conhecidos da arqueologia portuguesa da segunda metade do Século XX. Infelizmente, em ambos os casos a falta de contexto conhecido minimamente seguro ou mesmo plausível, impedem a sua aceitação inequívoca como elementos válidos para a nossa história de arte. No exemplar publicado por Farinha dos Santos, estamos perante um pequeno nódulo de sílex encontrado em superfície numa pequena cavidade próxima de Setúbal e conhecida como Toca do Pai Lopes (Santos, "Setúbal Arqueológica", 1981) mas que segundo alguns autores pode ter uma origem exclusivamente natural. No outro caso, publicado por G. Zbyzewski e Octávio da Veiga Ferreira ("Memórias da Academia de Ciências", 1984/85), estamos objectivamente perante um artefacto em osso, semelhante à conhecida "vénus impúdica" de Laugerie-Bass, uma das clássicas jazidas paleolíticas da Dordogne francesa. Relativamente a esta "estatueta" mostrada a Veiga Ferreira por um "tele-espectador" alertado por foto mostrada no programa que aquele arqueólogo teve na RTP no início dos anos 80 (?), uma conclusão mais perentória quanto à sua datação, na falta de qualquer contexto, só seria possível com a análise e datação directa da peça. Esta possível "vénus", cujo destino hoje desconhecemos, apresentava ainda outro aliciante especial... Segundo o respectivo detentor, teria sido descoberta ocasionalmente na "área de Santiago do Escoural", localidade onde se situa a Gruta do Escoural descoberta em 1963, e que durante três décadas (até às descobertas do Côa) manteve a exclusividade da presença de arte rupestre paleolítica em Portugal.

Tudo isto vem a propósito de recentes rumores (convenientemente imprecisos), do aparecimento no "mercado" nacional de antiguidades, de mais uma "vénus paleolítica", segundo consta em "marfim" e supostamente descoberta (?) algures no Alentejo. Segundo as imagens de muito fraca qualidade que circularam em alguns meios, o objecto em causa mostra-se à primeira vista demasiado semelhante a peças bem conhecidas da Pré-história europeia, nomeadamente às Vénus russas de Kostenki, nas margens do Rio Don...

Uma das conhecidas "vénus paleolíticas" de Kostienki (Rússia)

No entanto, face a olhares mais conhecedores, alguns detalhes denunciam a mão de falsário de "artefactos pré-históricos", actividade aparentemente mais comum do que poderíamos imaginar...e que alimentaram algumas "célebres" coleções privadas. Agravando a situação, mesmo que fosse possível peritar uma tal peça num laboratório qualificado, provavelmente nem assim se dissipariam todas as dúvidas. Em primeiro lugar, porque as análises de Carbono 14 em marfim costumam apresentar desvios muito grandes, tornando os resultados inconclusivos. Depois porque o requinte dos falsários pode chegar ao ponto de usarem "marfim fóssil", contrabandeado por pesquisadores furtivos de restos de mamutes congelados, actividade em franco (?) desenvolvimento na Sibéria.

(Porque não é fácil de aceder, tomo aqui a liberdade de difundir em "facsimile" o artigo de Zby e Veiga Ferreira sobre a referida "estatueta do Escoural".)


ADENDA (4 de Novembro de 2016)

Para que não restem dúvidas, João Luis Cardoso (professor, arqueólogo e "biógrafo" de Octávio da Veiga Ferreira) confirmou-me em mail recente que não tem dúvidas de que a chamada "Vénus do Escoural" é uma peça falsa. Não tem notícia do seu paradeiro actual mas poderá estar na posse de Seomara da Veiga Ferreira, filha de O.V.F.

ADENDA (29 de Março de 2017)

Vale a pena aqui referir um caso célebre de falsificação ocorrido em França, relacionado com a "descoberta  numa pequena gruta de Ain, La Genière, de um objecto com um bisonte gravado que se parecia estranhamente  com uma das grandes pinturas de Font-de Gaume, gruta localizada a 50 km. Durante muito tempo considerou-se tal objecto, como uma espécie de esboço perdido por um artista  paleolítico "itinerante". Posteriormente apurou-se que um falsificador aproveitara um decalque feito por Henri Breuil em Font de Gaume, para gravar o bisonte de La Grenière. (relato de André Leroi-Gourhan, em Les racines du monde",1982)







quinta-feira, 13 de outubro de 2016

J.R. dos Santos Júnior (1901-1990)

Um dos "berrões do Museu Nacional de Arqueologia


Graças a uma partilha no Facebook do meu colega Domingos Cruz, tive conhecimento de um filme datado de 1933, do espólio da cinemateca, documentando uma excursão aos célebres concheiros de Muge, durante décadas o sítio pré-histórico português mais conhecido e citado internacionalmente, identificado e escavado ainda no século XIX (Pereira da Costa, 1863). Para além do interesse pessoal na temática em si e do pitoresco das imagens, o que me chamou de imediato à atenção foi o nome do "realizador". J.R.dos Santos Júnior. E que eu saiba apenas uma pessoa assinava assim:



Exactamente, Joaquim Rodrigues dos Santos Júnior, uma figura muito especial da arqueologia e antropologia portuguesa do Século XX, hoje um tanto ou quanto esquecida. Nascido em 1901 e com uma formação muito variada, da Medicina à Antropologia, passando pela Química, Zoologia (foi o introdutor da anilhagem em Portugal...) etc...foi também homem de sete ofícios. À data das filmagens em causa, para além de docente de várias disciplinas na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (a sua verdadeira "casa mãe") era preparador-conservador do respectivo Laboratório Antropológico, hoje integrado no Museu de História Natural. Era já então colaborador próximo do Professor Mendes Correia, circunstancia que explica a sua presença em Muge na data em causa, uma vez que coincide com a época das escavações que Mendes Correia conduziu na região de Muge. (Penso que para além do interesse arquelógico, a ligação de Mendes Correia a esta região ribatejana tinha a ver com ligações familiares à família Relvas...)

Não está nas minhas intenções traçar aqui a biografia de Santos Júnior, apesar dos dados disponíveis na INTERNET serem pouco relevantes e a justificarem maior aprofundamento.

De facto, esta pequena nota, acaba por ser o resultado de uma evocação memorialista desencadeada pela "visualização" do filme em causa. Aquilo que parece algo tão remoto (afinal quase a um século de distância), de algum modo ainda se cruza com a minha própria vivência pessoal... É que, nos anos 80, apesar da sua idade, Santos Júnior ainda estava activo e "dava trabalho" ao Departamento de Arqueologia do IPPC, a entidade que superintendia às escavações arqueológicas realizadas em todo o país. Fazia-se então um esforço muito especial no sentido da normalização técnica quer a nível das condições metodológicas dos trabalhos de campo quer dos respectivos registos. Desde sempre que estava assumido que qualquer trabalho de campo implicava a divulgação dos resultados obtidos através da redação de um relatório. Mas enquanto actividade essencialmente "amadora" ou quanto muito supletiva, esses relatórios estavam no início dos anos 80 do século passado longe de obedecer a critérios técnico-científicos aceitáveis. Apesar do seu vasto currículo arqueológico, a partir de certa altura muito centrado nas antigas colónias, nomeadamente em Moçambique e Angola (tive aqui oportunidade de visitar alguns concheiros em 1983 na Barra do Quanza, perto de Luanda, escavados por Santos Júnior ver a propósito), Santos Júnior estava então muito desfasado das exigências que procurávamos impôr na Arqueologia portuguesa, então em fase de grande renovação e desenvolvimento. Com a delicadeza que se impunha face à sua avançada idade e ao seu estatuto de  Professor Catedrático jubilado, tratávamos os seus pedidos anuais para continuação das escavações no Casto de Carvalhelhos, Boticas (iniciadas em 1957), como um caso de  justificada excepção. Já então, com mais de 80 anos, Santos Júnior aproveitava as suas habituais estadias termais  nas proximidades do Castro (Caldas Santas de Carvalhelhos), para ali continuar quase por sua conta e risco, as suas campanhas anuais (quase três dezenas, invariavelmente reportadas na revista portuense "Trabalhos de Antropologia e Etnologia", como "mais uma campanha de escavações no Castro de Carvalhelhos...). Até que um dia de Março de 1986, tive a surpresa de uma visita de J.R. dos Santos Júnior no Departamento de Arqueologia do IPPC, então a funcionar no Museu Nacional de Arqueologia, em Belém. Na caminhada que fazia muitas vezes desde a paragem dos autocarros na Praça frente ao Palácio de Belém, até o Museu, reparara próximo dos Pastéis de Belém num idoso muito aprumado, usando laço mas que se deslocava com alguma dificuldade, amparado por uma bengala. Cerca de meia hora depois de chegar ao Museu, fui chamado à recepção pois um "Professor, de nome Santos Júnior, pedia para falar comigo". Quando desci à entrada do Museu reconheci de imediato o "idoso da bengala" vagueando entre as várias estátuas de "berrões" que na altura estavam armazenados próximo da recepção. Santos Júnior curvava-se perante um dos exemplares ali exposto e apalpando o ventre da estátua, repetia baixinho: será macho ou fêmea?

Conhecia assim pessoalmente Santos Júnior e a sua bengala, retratada centenas de vezes como "escala" nos seus muitos estudos de arte rupestre (quer no Norte de Portugal quer em Angola). Ofereceu-me então um dos seus últimos trabalhos que havia publicado nos Estados Unidos versando precisamente a temática dos "berrões" (ou "porcas" como a de Murça), um dos assuntos a que dedicou um importante estudo "A cultura dos Berrões no Noroeste de Portugal", in Trabalhos de Antropologia e Etbnologia, SPAE, Fasc.4, Vol.22, Porto, 1975.

Em jeito de homenagem, aqui deixo a reprodução facsimile do artigo que Santos Júnior me ofereceu nesse distante 13 de Março de 1986, quatro anos antes do seu falecimento na sua casa da Maia.










sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Da paternidade da Arqueologia Subaquática portuguesa




Seguindo oportunas sugestões divulgadas nas redes sociais, comprei a recente edição da VISÃO HISTÓRIA, (A grande aventura dos mares/ Naufrágios e Tesouros/ A evolução do mergulho e da arqueologia subaquática). Sabendo de antemão que por detrás da iniciativa estava o Alexandre Monteiro, tinha a garantia de dinheiro bem empregue e de leitura agradável para dois ou três serões. E não me enganei. Ainda não tive oportunidade de a ler na íntegra, mas o que vi até agora agradou-me sobremaneira, até porque o Alexandre Monteiro e os restantes co-autores, com destaque para o Filipe Castro, conseguem aquilo que, raramente vemos nos colegas arqueólogos "terráqueos". Conjugar o rigor com a actualidade dos dados e sua interpretação, sem excesso de jargão disciplinar, com um discurso de divulgação apelativo, capaz de cativar os leigos na matéria. Aconselha-se portanto a leitura, até porque este trabalho, nos dá uma perspectiva da época dos descobrimentos e do próprio país, tão surpreendente como inesperada, até para alguém como é o meu caso, que vem da área da História.

Acresce como mais valia a esta edição, na minha modesta e suspeita opinião, o reconhecimento do papel de FRANCISCO ALVES, (justamente apelidado de "pai da arqueologia subaquática em Portugal") na introdução, estruturação e desenvolvimento desta disciplina no nosso país. De facto havia estranhado o aparente "branqueamento" do seu papel na grande exposição do MNA sobre a Arqueologia subaquática em Portugal (O Tempo resgatado aos Mares), que revi muito recentemente no Museu Municipal de Viana do Castelo, onde ainda se encontra exposta. Segundo me explicaram, tal circunstância decorreu de exigência do próprio que, não concordando com alguns critérios seguidos, não quis o seu nome associado ao projecto ou ao respectivo catálogo. Desconheço os contornos da questão mas tendo trabalhado quase uma década com o Francisco, não me surpreende a justificação...

A exposição "O tempo resgatado ao mar", este Verão em Viana do Castelo
Detalhe da exposição no Museu Municipal de Viana do Castelo
Polémicas ou questiúnculas à parte, o nome do Francisco Alves, fica indelevelmente associado às transformações da arqueologia portuguesa (no seu todo e não apenas à subaquática) nas duas últimas décadas do século passado. Com um temperamento aventureiro mas carismático, que tantos dissabores lhe traria também, era sobretudo um construtor de projectos, capaz de congregar equipas de trabalho a quem sabia transmitir entusiasmo e dar objectivos. Não surgiu por acaso em 1980 à frente do Museu Nacional de Arqueologia, então a atravessar profunda e prolongada crise. Em quatro anos montara em Braga, em contexto pouco favorável, uma estrutura profissional inédita na paroquial arqueologia da época (Campo Arqueológico de Bracara Augusta), estrutura que nasceu para "salvar os vestígios romanos de Braga", ameaçados pelo urbanismo selvagem, mas que ainda hoje, quarenta anos passados, é o esqueleto da salvaguarda e investigação arqueológica naquela cidade.   ver a este propósito ou também aqui  Aliás seria com base nessa experiência que, confrontado por Vasco Pulido Valente, Secretário de Estado da Cultura de Sá Carneiro, imporia como condição para aceitar vir para a direcção do MNA, "carta branca" para a contratação (ainda que por destacamento do ensino secundário) de uma equipa de arqueólogos para consigo trabalharem.

O Primeiro-ministro Sá Carneiro chega ao MNA em 28 de Novembro de 1980 (cinco dias antes do desastre aéreo que o vitimou a 4 de Dezembro) onde é recebido pelo Director Francisco Alves, para a inauguração da Exposição "Tesouros da Arqueologia Portuguesa". Esta exposição, permitindo a reabertura do MNA em plena campanha eleitoral, era um dos compromissos de Francisco Alves e restante equipa para com o SEC Vasco Pulido Valente
Foi por essa via que toda uma "geração de jovens arqueólogos" (entre os quais me conto e que até então nunca ouvira falar do Francisco Alves) seria chamada à profissionalização até aí inexistente. No MNA, no novo Departamento de Arqueologia do IPPC e nos Serviços Regionais de Arqueologia (Norte, Centro e Sul), estes criados quase à imagem do Campo Arqueológico de Bracara Augusta. Aliás, no Norte, o Campo Arqueológico bracarense, sob a direção do Francisco Sande Lemos, serviria de incubadora do próprio Serviço Regional. Mas seria como director do MNA e do Departamento de Arqueologia do IPPC que finalmente Francisco Alves encontraria as condições para dar largas à sua paixão pelo mar (nascida na sua juventude em Algés) e pelos seus segredos arqueológicos. Sem prejudicar a reestruturação e reorganização do Museu, impostas pelo exigente "caderno de encargos" de Pulido Valente, o MNA serviria de estrutura de apoio técnico e logístico aos projectos que cedo inicia neste campo, nomeadamente o estudo do navio francês "L'Ocean", afundado perto da Boca do Rio, na costa algarvia. Fácil será calcular o grau de imaginação e improvisação que caracterizaram estas primeiras acções de "mar", em particular ao nível dos meios técnico-logísticos, mas que o Francisco sempre ultrapassava com desenvoltura, por vezes excessiva, e entusiasmo contagiante. Começa então a contar com algumas colaborações importantes e contribui para a formação prática dos primeiros arqueólogos com capacidades subaquáticas (ver a propósito aqui) num processo que não foi fácil nem linear. Já ao nível do Departamento de Arqueologia do IPPC, que eu passaria a liderar formalmente apenas em 1984 (embora na prática o Francisco há muito delegasse em mim a respectiva gestão corrente) a intervenção era de outro tipo. Por um lado de apoio financeiro, fazendo encaminhar para a Arqueologia Subaquática uma parte do bolo geral das verbas anuais da Arqueologia. Por outro, procurando o enquadramento jurídico-institucional de uma actividade que  estava então a dar os primeiros passos em Portugal. Tendo participado (sempre com os pés em terra firme) neste processo emergente, é pois com agrado e até algum espanto que dou conta, ao ler as páginas desta VISÃO-HISTÓRIA, do extraordinário caminho andado desde então. Mas numa altura em que se fala tanto de António Guterres (a propósito da sua eleição para Secretário Geral da ONU) importa recordar que o salto qualitativo aconteceu em 1996/97 com a criação pelo seu governo do IPA (Instituto Português de Arqueologia) e do respectivo Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática, como corolário de todo o processo do Côa. Francisco Alves deixara já a direcção do MNA e dedica-se finalmente ao seu velho sonho de construção de uma estrutura pública inteiramente dedicada à Arqueologia Subaquática. O CNANS instala-se então nas antigas Oficinas Gerais de Material de Engenharia, a Belém, tirando partido das suas características técnico-logísticas para a instalação de um grande laboratório de conservação, incluindo os grandes tanques necessários ao tratamento das peças recolhidas no fundo do mar.
(ver aqui: http://pedrastalhas.blogspot.pt/2015/05/coches-e-arqueologos-seis-anos-depois.html).
O fim precoce do IPA, traçado desde o governo de Barroso e concretizado em 2007 pelo PRACE de Sócrates, arrastaria consigo a extinção do CNANS. Num primeiro momento assiste-se à sua extinção administrativa e, posteriormente, com o projecto do novo Museu dos Coches (o tal projecto cultural decidido pelo Ministério da Economia...) concretiza-se o seu desmantelamento físico. Quando no sentido testemunho que fecha esta excelente revista (e que tomei a liberdade de aqui reproduzir em facsimile), Francisco Alves denuncia a "demissão do Estado na tutela do património subaquático", ainda que não esqueça muitos outros problemas, é ao desmantelamento do (seu) laboratório, que se está a referir em particular.

Não me cruzo com o Francisco praticamente desde que, amargurado com todas estas tristes circunstancias, se aposentou já há alguns anos e a última vez que falámos foi ao telefone. Pedia-me então que lhe confirmasse algumas datas e factos pois andava a escrever as suas memórias profissionais. Oxalá a mão não lhe trema e cumpra mais esse projecto, pois o seu testemunho vai ser essencial para a história da arqueologia portuguesa entre 1974 e 2007, na terra e no mar.


As instalações do IPA e do CNANS em Belém, já com a "morte anunciada", pelo Ministério da Economia...