quinta-feira, 25 de maio de 2017


Regresso ao Vale do Guadiana 


O "sarcófago" que protege o Castelo da Lousa, bem visível no sonar...

A percepção da profunda transformação paisagística do vale do Guadiana, entre a Juromenha (Alandroal) e o Pedrógão (Vidigueira) numa extensão de quase cem quilómetros, é algo que é difícil ou mesmo impossível traduzir por palavras. É preciso ter vivido aquele território para se ter a noção da mudança radical ali havida em tão poucos anos. Afinal, o enchimento começou há 15 anos (2002) se bem que já antes, com a desmatação sistemática, as mudanças tivessem começado a manifestar-se. É pois sempre com um misto de nostalgia mas também de algum indisfarçável orgulho, por ter participado no processo (esperando ter contribuído para que ele não fosse tão traumático...) que observo aquela nova paisagem "lacustre" sempre que por ali passo, normalmente em serviço.



Mas nesta década e meia, havia algo que ainda não experimentara. Não porque não tivesse tido muitas oportunidades para o fazer mas porque havia uma espécie de réstia de pudor que o parecia impedir. Navegar por cima daquela paisagem que, pelo menos desde os anos 70 (escavações no Xerez de Baixo, com o Luis Raposo), me habituara a percorrer com os pés bem assentes na terra, aprendendo o que era a dura realidade da canícula alentejana, ainda sem suspeitar que um dia por aqui haveria de assentar arraiais.


Pois finalmente, esse "tabu" caíu, ontem mesmo, por força de um desafio do Martin Hock, o arqueólogo alemão, há muito radicado entre nós e professor há algumas décadas na UBI (Universidade da Beira Interior) onde, através da topografia especializada, tem ajudado a incutir em várias gerações de engenheiros ali formados, uma perspectiva mais humana do território. O Martin, (com quem na distante década de oitenta, em conjunto com o Jorge Raposo do Centro de Arqueologia de Almada, aprendi os princípios básicos da topografia, através do manejo em campo da "alidade prancheta", em trabalhos no chamado "Castelo de Alpiarça", ou nas ruínas romanas da Boca do Rio, Lagos) veio-me sugerir a concretização de uma experiencia de aplicação do "sonar", ao controlo da situação de estruturas afundadas pela Barragem do Alqueva. Ambos pensámos de imediato no Castelo da Lousa, por razões compreensíveis. Em 1997, quando na EDIA promovi os primeiros trabalhos de campo, aquele sítio estava no centro das minhas preocupações, e apesar de uma planta efectuada anos antes por Jurgen Wahl, havia necessidade de produzir um novo levantamento, completo e rigorosamente georeferenciado, perante a inevitabilidade da inundação. O trabalho viria a ser adjudicado à UBI e, naturalmente coordenado no terreno pelo Martin Hock, embora tivesse envolvido vários técnicos e alunos daquela Universidade.
O Martin Hock e o José Perdigão, sobre o Castelo da Lousa

O Castelo da Lousa, já protegido pelo sarcófago de sacos de areia (2002). À esquerda um dos marcos de apoio topográfico do projecto de georeferenciação e levantamento topográfico da UBI, coordenado pelo Martin Hock

Foi pois com alguma emoção (e vinte anos mais velhos) que, com a colaboração da EDIA e o apoio directo de uma equipa daquela empresa, coordenada pelo José Perdigão, (o meu antigo e indispensável assistente "todo-o-terreno") que também participou em todo o processo da Lousa e não só), que navegámos durante largos minutos sobre as ruínas do velho "Castelo da Lousa", cujo topo se encontra 15 metros a baixo da actual cota (147). Foi particularmente emotivo o momento em que a forma do gigantesco sarcófago de sacos de areia, surgiu nitidamente no sonar, confirmando o rigor das coordenadas obtidas duas décadas antes pela equipa do Martin. Embora falte tratar os dados obtidos de modo a se construir uma imagem 3D da área sondada, os resultados parecem apontar para a manutenção das condições de estabilidade de toda a estrutura, já observadas há uns cinco anos numa delicada operação de mergulho então promovida pelo Museu da Luz.




O topo da colina, onde se situava o "Povoado Calcolítico do Moinho de Valadares". Esta zona é sazonalmente coberta pelas águas, intensificando a erosão.
As escavações no Povoado do Moinho de Valadares (1999)

















Não nos ficámos pela Lousa, cuja localização, observável do Museu da Luz e da nova aldeia, seria interessante assinalar fisicamente de alguma maneira, no que seria uma evocação de enorme simbolismo. Passámos depois junto a Valadares, onde se localizava um pequeno povoado calcolítico escavado a meia encosta pela equipa do António Valera, e cuja cota muito superficial, o transforma na vítima perfeita da forte erosão marginal que era expectável e cujos resultados observámos. Em frente, após passagem junto à pequena ilha que assinala o demolido "Convento do Alcance", parámos no abrigo da "Rocha da Moura", uma pequena falha no xisto dominante, a que se acedia subindo com dificuldade...
A "Rocha da Moura", estudada arqueologicamente pela equipa da Susana Correia. Hoje, ao nível das águas (cota 147) mas frequentemente submersa.

 A localização da antiga Fábrica da Celulose junto à antiga ponte metálica do Guadiana (ambas demolidas), adivinha-se pela presença da velha estrada que hoje emerge das águas na direção de Mourão. Nas proximidades, julgamos ter detectado no sonar a pequena mamoa artificial que construímos sobre o que restava da Anta (da Fábrica) aí escavada pela equipa do Jorge Oliveira, da Universidade de Évora.

A velha estrada de Mourão, após a ponte metálica do Guadiana. À esquerda situava-se a Fábrica da Celulose e à direita a "Anta da Fábrica", hoje protegida por uma "mamôa".

A nova mamoa da "Anta da Fábrica de Celulose" (2001) que pensamos ter localizado com o "sonar"
Seguindo mais para Norte, frente a Monsaraz, observámos do lado de Mourão a larga baía que corresponde à "Vila Velha", a povoação que a História esquecera mas que a tradição oral ainda guardava e que o Alqueva e a Arqueologia (neste caso graças à equipa coordenada pela Heloísa Santos) redescobriu e escavou até que ao dia em que as águas chegaram. Do outro lado do lago, numa zona que pela topografia é das mais largas do regolfo, apenas a nova ponte nos ajuda a localizar os muitos sítios, de todas as épocas, testemunhos de um intenso povoamento do vale que dava pelo nome de Xerez: os paleolíticos nos Sapateiros (logo na base de um dos grandes pilares da actual ponte...); os vestígios dos últimos caçadores-recolectores mesolíticos da Barca do Xerez, hoje a grande profundidade; os restos dos assentamentos dos primeiros agricultores no Xerez 12, sem esquecer finalmente o local em que o Dr. Pires Gonçalves, descobriu vários menires que mais tarde reinstalara em "quadrado", como Cromeleque do Xerez (hoje deslocalizado para junto da Orada).
O Vale do Xerez, cenário de intensa ocupação humana desde o Paleolítico até ao final do Século XX, é hoje um extenso lago.
A proteção das Antas no Vale do Xerez. Em cima a Anta do Piornal (com a actual ponte em 2ºplano), anta da margem direita, que fazia dupla com a Anta da Fábrica, na margem esquerda, à mesma cota. Em baixo Anta do Xerez, escavadas pelo Prof. Victor Gonçalves.


















A nossa navegação, passaria ainda por uma das grandes escavações do Alqueva, o "Povoado do Porto das Carretas", conduzida pelo Carlos Tavares da Silva e a Joaquina Soares, os arqueólogos que haviam identificado o sítio calcolítico no início dos anos oitenta. As estruturas arqueológicas, de pouca potência e actualmente protegidas por espessa camada de areia, não são relevantes para o sonar. Mas a localização, do povoado, em esporão sobre uma antiga passagem do rio, o Porto das Carretas, protegida na época da Restauração por uma atalaia, não deixou de ser assinalada pela nossa instrumentação.
Navegando sobre o "Porto das Carretas"

As escavações no Porto das Carretas (1989)

A nova ponte de Mourão, em construção (2000?) e na actualidade. A sua construção permitiu a descoberta e escavação do sítio paleolítico dos Sapateiros, sob a direção do Prof. João Pedro Ribeiro

Detalhe do excelente poster (Anyforms) produzido para a National Geographic (Abril 2014) em colaboração com a EDIA, sobre o património cultural e ambiental do Alqueva, assinalando a posição relativa de estruturas como o Castelo da Lousa no actual lago do Alqueva.

A "romagem" estava a terminar e havia que regressar,à Luz. Enquanto navegávamos em velocidade de cruzeiro, invadiu-me uma estranha sensação de ter acabado de percorrer de novo mas numa outra dimensão espaço/temporal, caminhos tantas e tantas vezes trilhados durante os seis anos em que coordenei os trabalhos no Vale (1996-2002). Nesse período, a partir do meu escritório de Mourão, ia quase diariamente ao campo para acompanhar o progresso dos muitos trabalhos em curso, recolhendo directamente junto dos colegas responsáveis, a informação necessária à tomada das decisões mais adequadas em face dos resultados, tantas e tantas vezes completamente inesperados, como é afinal, próprio e por definição, da natureza da arqueologia...


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