quinta-feira, 22 de junho de 2017

"Quando Portugal Ardeu"


O título parece remeter para a triste e dramática actualidade. Mas trata-se apenas de uma infeliz coincidência. "Quando Portugal Ardeu", é o título de um recente e interessante livro do jornalista Miguel Carvalho, sobre o lado negro da Revolução dos Cravos. Quando do seu lançamento em Março passado o tema já havia despertado a minha curiosidade mas a oportunidade para o comprar só na passada sexta-feira se proporcionou, precisamente na véspera dos dramáticos eventos que abalaram o Pedrógão Grande.

Praticamente que, desde o 25 de Abril, evento que me apanhou na véspera de fazer 22 anos, tenho procurado acompanhar, dentro do humanamente possível e normal, a produção histórico-documental sobre este evento que ainda hoje marca de forma indelével a nossa história contemporânea. Aliás tal já começara um pouco antes, quando adquiri e devorei (na minha ingenuidade poítica da época), o "Portugal e o Futuro" do General Spínola... ver aqui Já depois do 25 de Abril, dado o especial interesse que (à revelia da minha posterior carreira profissional) sempre mantive pela história contemporânea, tornei-me leitor assíduo de toda a bibliografia que ia surgindo sobre a Revolução, essencialmente na base de testemunhos pessoais, transmitindo a visão de alguns dos seus principais protagonistas, a solo, ou em colaboração com jornalistas. Nesse interesse não ignorava até os testemunhos dos "derrotados", nomeadamente o "Depoimento" de Marcelo Caetano de que ainda existirá um exemplar lá por casa.

Porquê uma referencia especial a mais este testemunho, já quase há distância de meio século, num blog essencialmente memorialista/patrimonialista? Grande parte da curiosidade pelos factos nele narrados advém antes de mais da circunstância de eu ser contemporâneo dos mesmos. Há pois esse lado de voyeurismo histórico que nos atrai a revisitar um passado que também consideramos como algo de pessoal. Depois há também esse exercício de nos olharmos ao espelho e que resulta no confronto, tantas vezes contraditório, entre as nossas memórias pessoais e as memórias dos outros, ou mesmo, as memórias reveladas pelos documentos...E nesse aspecto, não posso deixar de referir que, pese embora o dramatismo da narrativa e a gravidade de tantos dos factos aqui testemunhados (afinal há mesmo um lado muito negro ainda pouco ou nada aflorado pela História "oficial"), como testemunha contemporânea, interessada e envolvida, o lado festivo da "revolução dos cravos" e da "conquista da liberdade", ainda se sobrepõe de forma inequívoca nas minhas memórias pessoais. Aliás, muitos dos eventos então vividos, com excepção para as vítimas que também as houve, acabariam por subsistir muitas vezes no domínio da narrativa anedótica. E, entrarão nesse domínio, até algumas historietas arqueológicas, como a daquela tarde de Sábado de 28 de Setembro de 1974, quando um grupo de jovens estudantes do GEPP (associação informal de estudantes da Faculdade de Letras interessados pelo Paleolítico) regressava de uma expedição aos terraços quaternários da costa alentejana, entre Sines e o Pessegueiro. Com a mala do Toyota emprestado pelo meu pai, carregada de calhaus rolados de potencial interesse pré-histórico, fomos barrados na Portagem de Almada, pelas barricadas de soldados e operários da Margem Sul, que impediam a entrada dos contra-revolucionários convocados por Spinola e por Galvão de Melo para a a manifestação da "Maioria Silenciosa". Numa altura já muito agitada e em que constava que tinha sido interceptada uma carrinha funerária com um caixão carregado de armas... lá tivémos que explicar aos atónitos barragistas que as pedras, ainda que possíveis "armas pré-históricas" de arremesso, eram afinal inofensivo material de estudo...arqueológico.


Estou longe de ter terminado a leitura das mais de 500 páginas da obra de Miguel Carvalho, escrita num tom jornalístico que me agrada quando bem estruturado e suficientemente documentado, como parece ser o caso. Mas emocionei-me praticamente desde as primeiras páginas, com a história de João Guilherme Arruda, uma das cinco vítimas assassinadas pela PIDE, num último acto de desespero, na tarde do próprio dia 25 de Abril, na Rua António Maria Cardoso. Como todos os meus contemporâneos que viveram essa madrugada irrepetível, não ignorava essa tragédia que veio macular esse dia mas que com o passar dos anos, pertencia já à ganga da própria História. Mas a narrativa de Miguel Carvalho, deu um conteúdo tão humano e pessoal aos factos, que eu não pude deixar de me sentir identificado com aquele colega (com o qual me cruzei certamente nos corredores da Faculdade de Letras que ambos frequentávamos nesse ano de 74). Também o João que como eu vinha de uma família pobre da província, encontrara no Seminário, a possibilidade de aceder à formação escolar que doutro modo jamais conseguiria. Provavelmente ainda no Seminário (ele em Braga eu em Almada, em período de renovação conciliar), ambos começáramos a procurar entender as causas de tantas injustiças e desigualdades. Ambos, certamente, começávamos então a sonhar com um mundo diferente, em particular a partir do momento em que entrámos na mesma Faculdade, no meu caso, dois anos mais velho, em 71 para História, o João em 73 para Filosofia... Ambos sofremos nessa manhã de 25 de Abril de 1974, quando as dúvidas ainda eram muitas sobre a efectiva orientação do golpe militar em curso. Ambos rejubilámos ao ouvir na rádio as canções do Zeca Afonso ou do Adriano Correia de Oliveira que todos conheciamos de cor mas que nunca passavam na rádio. Mas para o João Guilherme Rego Arruda, ceifado cerce por uma rajada assassina, o dia mais longo das nossas vidas já não chegaria ao fim. Porquê o João e não o António? A vida e a História, afinal também se fazem destes detalhes.

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